Vivemos em uma época em que a visibilidade se tornou um bem mais desejado do que nunca. O que antes estava reservado às elites midiáticas agora é acessível a qualquer um com um smartphone e conexão à internet. No entanto, essa democratização da visibilidade traz consigo implicações profundas e preocupantes. Estamos nos tornando protagonistas de nossas próprias histórias ou apenas figurantes em um espetáculo sem fim, regido por algoritmos e expectativas externas?
Recentemente, o caso de Jennifer Castro, que recusou ceder seu lugar em um avião e foi filmada, viralizou nas redes sociais. Em poucos dias, sua vida privada foi exposta e sua imagem transformada em mercadoria. Ganhou seguidores, contratos publicitários e um lugar de destaque na vitrine virtual. Mas a que custo? Este episódio é um reflexo do viralismo, termo que ilustra a ética da hiperexposição e da constante busca por visibilidade como um valor intrínseco. O viralismo transforma vidas cotidianas em espetáculos efêmeros e frequentemente desconectados da realidade.
A Vida Espetáculo do Viralismo
Habitar a internet hoje é mergulhar em um turbilhão incessante de informações, onde cada scroll nos apresenta uma nova avalanche de conteúdos. Entre sustos, absurdos e alguns solavancos emocionais, somos atravessados por memes pouco criativos, polêmicas efêmeras sobre o caso investigativo da semana, crises políticas e performances bizarras. Nada parece escapar da lógica de se transformar em espetáculo.
Esse ritmo vertiginoso, embalado pela urgência de reagir ao que está sendo dito agora, alimenta uma cultura de participação automática e, muitas vezes, irrefletida. Todos parecem ter algo a dizer, não necessariamente porque possuem uma visão genuína ou nova, mas porque o silêncio equivale a perder o timing de fazer parte do “movimento”. Vazou! Urgente! Grave! São os gatilhos que pavimentam nosso trajeto no frenesi do consumo e compartilhamento digital.
O viralismo é o empuxo irresistível de participar de qualquer acontecimento e extrair dele algum ganho — seja audiência, relevância ou lucro. É a engrenagem que sustenta a corrida por emitir a “opinião certa”, fazer a piada mais compartilhada ou simplesmente prolongar uma pauta até que ela se esgote. Esse impulso se alimenta de uma premissa fundamental: a de que exposição equivale a sucesso. E, afinal, se você está se expondo, ou expondo os outros, é porque alguém está interessado em ver.
Essa lógica vira uma armadilha para as relações humanas, transformando o novo ano em 365 oportunidades de “hitar”, “lacrar” ou lotar caixas de comentários. Chuva de likes, seguidores e viralidade são tratados como os principais indicadores de relevância. E nesse cenário, a distinção entre a validação autêntica e a validação performática se torna cada vez mais difícil de perceber.
O Viralismo e a Sociedade do Espetáculo
Guy Debord, em sua obra A Sociedade do Espetáculo (1967), já previa uma sociedade em que as relações humanas seriam mediadas por imagens e aparências. Para Debord, o espetáculo não é apenas uma coleção de imagens, mas uma forma de organização social onde a representação toma o lugar do real. O que vemos hoje é uma extensão dessa ideia, onde a hiperexposição – impulsionada pelas redes sociais – transforma até mesmo os momentos mais íntimos em conteúdo compartilhável.
Byung-Chul Han, em A Sociedade da Transparência (2012), complementa essa análise ao sugerir que vivemos em uma era de excessiva visibilidade. O desejo por reconhecimento e aprovação não é apenas social, mas também psíquico. Han descreve como a busca incessante pela validação transforma indivíduos em mercadorias. Não é apenas o que fazemos, mas quem somos que se torna vendável.
O conceito de viralidade encaixa-se perfeitamente nessa lógica. Ele não só mede o sucesso de uma ideia ou de um indivíduo, mas também redefine o valor de nossas interações. Tornar-se viral significa ocupar temporariamente um espaço de destaque em um sistema regido por algorítimos, onde as narrativas humanas são simplificadas e moldadas para maximizar engajamento.
O Custo Psíquico do Palco Eterno
A transformação de experiências cotidianas em conteúdo tem um impacto significativo sobre a saúde mental. Psicanalistas como André Alves e Lucas Liedke defendem que o ego contemporâneo é cada vez mais moldado pela necessidade de validação contínua, uma perspectiva alinhada com a teoria de Jacques Lacan. Na busca por reconhecimento, o indivíduo se torna escravo de uma performance constante, onde é necessário estar “on” o tempo todo. Essa pressão gera esgotamento, ansiedade e uma desconexão com a própria identidade.
A relação interpessoal também sofre. Em um mundo onde tudo vira palco, a autenticidade dá lugar à encenação. As relações humanas tornam-se transações performáticas, condicionadas pela necessidade de serem vistas e validadas. O viralismo é também uma forma de vigilância coletiva. Qualquer erro ou fragilidade pode ser capturado, ampliado e transformado em entretenimento para massas.
O Papel dos Algoritmos na Cultura do Viralismo
Os algoritmos são os grandes mediadores da visibilidade na era digital. Eles determinam o que é visto, o que é priorizado e, em última análise, o que importa. Em A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), Shoshana Zuboff descreve como as plataformas digitais transformam dados pessoais em commodities lucrativas. Essa dinâmica alimenta a lógica do viralismo, incentivando a produção incessante de conteúdo, independentemente de seu impacto emocional ou ético.
Os indivíduos não apenas consomem conteúdo, mas também são moldados por ele. A busca por relevância – e sobrevivência digital – leva à adoção de comportamentos projetados para agradar os algoritmos: desde exagerar emoções até promover uma imagem distorcida da realidade.
O Viralismo como um Novo Tipo de Poder
A viralidade também confere uma forma peculiar de poder. Pessoas como Jennifer Castro, cujas vidas são abruptamente catapultadas para a fama, tornam-se influenciadoras em potencial. Esse poder, no entanto, é frágil e efêmera. Estar no centro das atenções não garante controle sobre a narrativa. Ao contrário, as histórias muitas vezes são apropriadas, reinterpretadas e monetizadas por terceiros.
O viralismo também redefine noções tradicionais de responsabilidade e empatia. Em vez de promover o entendimento mútuo, ele frequentemente transforma conflitos em espetáculos polarizantes. Esse cenário aprofunda divisões sociais, transformando indivíduos em representantes simbólicos de causas ou opiniões alheias.
Para quem estamos dando o palco?
Em meio à lógica frenética do viralismo, é urgente refletir sobre uma questão essencial: quem e o que estamos escolhendo observar, seguir, amplificar? Ao consumir e compartilhar conteúdos, desempenhamos o papel de plateia e, ao mesmo tempo, de produtores. Com cada clique, curtida ou comentário, damos visibilidade — e, muitas vezes, credibilidade — a narrativas, comportamentos e ideias. Esse ato aparentemente passivo molda diretamente o que ganha força e o que é deixado de lado.
Mas será que estamos atentos às consequências de nossas escolhas? Ao priorizar conteúdos que chocam, escandalizam ou nos distraem, acabamos por alimentar a lógica de uma sociedade que valoriza o espetáculo acima da substância. Investimos nosso tempo e energia em narrativas efêmeras, muitas vezes sem avaliar criticamente o impacto que elas têm, não só sobre nós, mas sobre os envolvidos.
Byung-Chul Han nos alerta sobre o esgotamento psíquico causado pela hiperexposição, mas há um outro custo igualmente relevante: o desperdício do nosso tempo e atenção com conteúdos que não nos constroem, nem nos conectam genuinamente com os outros. Ao escolher o que consumir e compartilhar, temos uma oportunidade única de subverter a lógica do espetáculo. Podemos optar por dar palco a histórias que aprofundam, inspiram e provocam transformações positivas — em vez de apenas reforçar um ciclo de performance e superficialidade.
Essa reflexão nos convida a pensar criticamente sobre os valores que norteiam nossas interações digitais. Afinal, o palco que escolhemos sustentar reflete o tipo de sociedade que ajudamos a construir. Se queremos um espaço mais autêntico e menos governado por métricas de engajamento, precisamos começar a agir como curadores conscientes de nossas atenções e de nossas amplificações.
Resistindo ao Palco Eterno
Apesar da onipresença do viralismo, é possível resistir à sua tirania. Byung-Chul Han sugere a recuperação de espaços de introspecção e silêncio como uma forma de escapar à compulsão por visibilidade. Em um mundo que valoriza a performance acima de tudo, a autêntica conexão com o outro e consigo mesmo é um ato de resistência.
Reavaliar nossa relação com as redes sociais e os algoritmos também é essencial. Educação digital, reflexão crítica e uma abordagem consciente do consumo e produção de conteúdo podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do viralismo.
Conclusão
Estamos, de fato, nos tornando produtos do viralismo. Vivemos em uma sociedade que transforma tudo e todos em mercadorias visíveis. Embora a hiperexposição ofereça oportunidades, ela também cobra um alto preço. Para não nos perdermos no palco eterno, é crucial recuperarmos espaços de privacidade, reflexão e humanidade. Afinal, não somos apenas figurantes – mas cabe a nós decidir se queremos continuar performando ou recuperar o controle de nossas narrativas.
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