Sobre esta série
Este artigo faz parte de uma série dedicada a explorar as principais religiões e doutrinas do mundo. Nosso objetivo é apresentar suas histórias, crenças e práticas de forma clara e respeitosa, promovendo conhecimento e compreensão mútua. Ao longo dos próximos textos, falaremos tanto de tradições ocidentais quanto orientais, assim como das religiões de matriz africana e de outras expressões presentes no Brasil. A proposta é contribuir para a diminuição do preconceito e abrir espaço para um diálogo mais profundo sobre espiritualidade, cultura e sociedade.
Protestantes e Evangélicos: da Reforma à ascensão pentecostal no Brasil — história, princípios, política e dilemas contemporâneos
O protestantismo nasceu dentro do cristianismo, a partir de debates no seio do catolicismo europeu do século XVI. No Brasil de hoje, “evangélicos” é o termo socialmente mais usado para o amplo conjunto de igrejas protestantes — especialmente as pentecostais e neopentecostais — que cresceram de forma acelerada nas últimas décadas. O pano de fundo demográfico ajuda a entender a urgência do tema: segundo o Censo 2022 do IBGE, os católicos caíram para 56,7% e os evangélicos subiram para 26,9% da população, consolidando uma transformação religiosa com impactos culturais e políticos diretos.
1) O ponto de partida: o que foi (e por que foi) a Reforma Protestante
A Reforma costuma ser datada de 1517, quando Martinho Lutero publicou as 95 Teses criticando a prática das indulgências — certificados que prometiam remissão de penas temporais ligadas ao pecado, cuja comercialização se tornara fonte de abuso e escândalo na Europa tardo-medieval. Lutero argumentava que a salvação não podia ser “vendida” nem condicionada a obras humanas. A Enciclopédia Britannica resume: a partir do século XII as indulgências se difundiram, surgiram abusos com sua venda, e Lutero as contestou; mais tarde, o Concílio de Trento (1545–63) reprimiu os abusos, sem abolir a doutrina. Além da disputa teológico-pastoral, a Reforma prosperou por fatores estruturais. De um lado, príncipes e cidades viram no movimento uma via para autonomia frente a Roma; de outro, a imprensa de tipos móveis multiplicou panfletos, catecismos e traduções bíblicas em língua vernácula, acelerando o debate público. Sem a prensa, não haveria uma “Reforma comunicacional” com tal alcance. 2) O que sustenta a identidade protestante (e em que difere do catolicismo)
A teologia reformada é frequentemente sintetizada pelas cinco solas: Scriptura, Fide, Gratia, Christus e Soli Deo Gloria — a Escritura como autoridade final, a justificação pela fé, a salvação por graça, a centralidade de Cristo e a glória de Deus como finalidade. Em consequência, a maioria das tradições protestantes reconhece dois sacramentos (Batismo e Ceia/Eucaristia), em contraste com os sete sacramentos do catolicismo. A doutrina católica, por sua vez, enfatiza a Tradição e o Magistério junto com a Escritura, e entende a justificação como obra da graça recebida, entre outros meios, no Batismo (sem reduzir-se a “fé + obras” em termos simplistas). Essas diferenças explicam estilos e expectativas distintas de vida e prática religiosa. Pesquisas do Pew Research mostram que, na América Latina, convertidos do catolicismo ao protestantismo relatam ter buscado “uma relação mais pessoal com Deus”, outro estilo de culto e igrejas que ajudam mais seus membros — fatores ligados à centralidade da experiência e da comunidade na prática evangélica.
3) Reforma em plural: luteranos, reformados (calvinistas) e anglicanos
Sob o nome “protestantismo” cabem tradições com sotaques próprios. O luteranismo consolidou a teologia da justificação e uma liturgia renovada; o calvinismo organizou comunidades disciplinadas, com forte ênfase na soberania de Deus e na predestinação; o anglicanismo nasceu de um cisma político-jurídico (Ato de Supremacia, 1534) que fez do monarca inglês o chefe da Igreja da Inglaterra, combinando elementos reformados e católicos em sua teologia e culto.
4) O salto atlântico: a chegada do protestantismo às Américas
A expansão protestante para o Novo Mundo ocorreu em ondas: migrações puritanas para a América do Norte nos séculos XVII–XVIII; missões protestantes na América Latina a partir do século XIX (colégios, imprensa, hospitais); e, no século XX, o Pentecostalismo, nascido do Avivamento da Rua Azuza (Los Angeles, 1906) sob liderança de William J. Seymour, tornou-se o principal vetor de crescimento no Sul Global.
O que é o Neopentecostalismo?
O neopentecostalismo é a terceira grande onda do movimento pentecostal no mundo, surgido a partir da década de 1970. Ele deriva diretamente do pentecostalismo clássico (iniciado no começo do século XX com o avivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, em 1906) e do chamado pentecostalismo de segunda onda (anos 1950, marcado por igrejas como a Assembleia de Deus e Congregação Cristã). No entanto, os neopentecostais trouxeram novas ênfases e métodos de expansão que os distinguem fortemente das tradições protestantes históricas.
Enquanto o protestantismo clássico nasceu da Reforma do século XVI, com princípios como a centralidade da Bíblia (Sola Scriptura) e a salvação pela fé (Sola Fide), e o pentecostalismo focava na experiência do Espírito Santo (dons, línguas, curas), o neopentecostalismo ampliou esse repertório ao incorporar elementos de teologia da prosperidade, guerra espiritual contra “forças demoníacas” e uma estratégia comunicacional moderna (rádio, TV, depois internet).
Diferenças em relação ao protestantismo clássico
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Ênfase material: enquanto o protestantismo histórico (como luteranos, presbiterianos, batistas) enfatiza a vida cristã baseada em fé e ética, os neopentecostais pregam a prosperidade financeira como sinal da bênção divina.
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Culto midiático e emocional: ao invés de liturgias formais, prevalece o culto-espetáculo, com forte uso de música, testemunhos e linguagem corporal.
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Personalismo: muitas igrejas neopentecostais são fortemente centradas em líderes carismáticos, diferindo das estruturas colegiadas das denominações tradicionais.
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Expansão agressiva: uso intensivo de marketing religioso, compra de redes de televisão (como a Record, adquirida pela Igreja Universal do Reino de Deus em 1989) e presença maciça na política.
O Avivamento da Rua Azusa (1906)
O Avivamento da Rua Azusa foi um movimento religioso que começou em Los Angeles (EUA), em 1906, liderado por William J. Seymour, um pastor afro-americano.
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Ele ocorreu em um contexto de busca por um cristianismo mais “vivo” e experiencial, marcado por oração intensa, manifestações espirituais (como glossolalia — o falar em línguas), curas, profecias e culto vibrante.
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Os encontros eram realizados em um antigo galpão da Rua Azusa, atraindo brancos, negros, imigrantes, homens e mulheres — algo revolucionário para a época, em plena segregação racial nos EUA.
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Esse movimento espalhou-se rapidamente, enviando missionários a outras partes do país e do mundo. Por isso, é considerado o marco fundador do pentecostalismo moderno.
A “Segunda Onda” Pentecostal (anos 1950–60)
Depois do surgimento do pentecostalismo clássico (Assembleias de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Igreja de Deus etc.), ocorreu uma expansão chamada de segunda onda pentecostal ou “movimento carismático”.
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Esse movimento ganhou força a partir dos anos 1950, especialmente em países da América Latina, África e Ásia.
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Enquanto a primeira onda estava mais ligada a igrejas específicas fundadas por missionários (como a Assembleia de Deus no Brasil, em 1911), a segunda onda levou as práticas pentecostais para dentro de denominações protestantes históricas e até mesmo da Igreja Católica.
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Isso deu origem ao que se chama de renovação carismática, que passou a valorizar dons do Espírito Santo em igrejas já estabelecidas.
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Terceira Onda (a partir dos anos 1970)
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Neopentecostalismo: crescimento de igrejas que associam dons espirituais com ênfase em prosperidade financeira, guerra espiritual e uso intensivo da mídia.
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Exemplos no Brasil: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus.
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Marca registrada: culto mais “espetacularizado”, forte presença midiática, discurso político-organizacional.
5) Brasil: de missões históricas ao pentecostalismo (três ondas)
No Brasil, denominações “históricas” (batistas, presbiterianas, metodistas, luteranas) fincaram raízes entre o fim do século XIX e início do XX. O ponto de inflexão veio com o pentecostalismo:
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Onda clássica (início do séc. XX): Congregação Cristã no Brasil (1910), ligada a Luigi (Louis) Francescon, e Assembleia de Deus (1911), fundada por Gunnar Vingren e Daniel Berg em Belém (PA), após influências do avivamento norte-americano.
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Onda deuteropentecostal (meados do séc. XX): crescimento de igrejas com organização mais nacional e uso intenso de rádio, TV e cruzadas;
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Onda neopentecostal (desde os anos 1970): ênfase na teologia da prosperidade, guerra espiritual e forte evangelismo eletrônico; expansão de instituições como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Estudos clássicos de Ricardo Mariano descrevem essa evolução e sua capilaridade urbana.
6) Por que o protestantismo (sobretudo pentecostal) se espalhou?
A resposta combina idéias, mídias e contexto social:
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Acesso à Bíblia e à pregação em língua do povo, com ênfase na experiência do Espírito e na promessa de transformação de vida;
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Estruturas flexíveis (templos pequenos, lideranças locais, redes de vizinhança) que crescem rápido nas periferias urbanas;
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Mídias eletrônicas (rádio/TV) e, depois, redes sociais — desde os anos 1980 — potencializando alcance e “culto-ao-vivo”;
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Demanda por apoio prático (emprego, saúde, drogas, violência doméstica): convertidos relatam que buscavam “igrejas que ajudam mais os membros” e cultos mais envolventes.
Em dados regionais, o Pew Research aponta que, na América Latina, o fluxo líquido de conversões nas últimas décadas foi de perda para o catolicismo e ganho para o protestantismo — e que os protestantes tendem a declarar maior centralidade da fé na vida diária e maior frequência ao culto.
7) Evangélicos e política no Brasil: organização, agendas e tensões
A institucionalização do poder evangélico no Parlamento tem um marco: a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), formalizada em 2003 e recorrentemente reeditada a cada legislatura. No site oficial da Câmara dos Deputados é possível consultar o registro da FPE e seus documentos; a literatura acadêmica mapeia seu tamanho, perfil e atuação — do foco em pautas de costumes à negociação com governos de diferentes espectros.
Pesquisas comparativas (como o livro de Paul Freston e relatórios analíticos sobre a América Latina) mostram que a politização evangélica é um fenômeno global, mas com características locais: no Brasil, convergiu com a mídia religiosa, o associativismo e a construção de capitais morais (família, honestidade, trabalho) em disputa com outras identidades políticas.
8) Críticas recorrentes: prosperidade, mercantilização e liberdade religiosa
Um bloco importante de críticas recai sobre a chamada teologia da prosperidade (a ideia de que fé + confissão + ofertas geram bênçãos materiais). Pesquisas sociológicas descrevem tensões entre promessa religiosa e resultados sociais, o uso de mídias de massa e a oferta de “serviços mágico-religiosos” (cura, libertação, campanhas), além do sincretismo consciente com a religiosidade popular. No Brasil, Ricardo Mariano analisou esse arranjo e sua eficácia institucional.
Do ponto de vista jurídico, já houve decisões pontuais da Justiça reconhecendo práticas abusivas em casos específicos — por exemplo, decisão do TJ-PE condenando a IURD a indenizar um ex-fiel que doou grande parte do patrimônio motivado por promessas de prosperidade. Tais casos, naturalmente, não autorizam generalizações: protegem a liberdade religiosa e, ao mesmo tempo, coíbem condutas lesivas.
No plano público, a atuação da FPE suscita debates sobre laicidade do Estado e representação: para alguns autores, trata-se de uma bancada legítima de interesses; para outros, o risco é a confessionalização de políticas (educação, costumes, direitos reprodutivos). A bibliografia recente traz diagnósticos e dados sobre composição sociológica e padrões de voto dos parlamentares evangélicos eleitos em 2022.
Nota de método e responsabilidade: críticas aqui registradas se baseiam em estudos acadêmicos e decisões públicas verificáveis e não se dirigem a indivíduos ou fiéis enquanto tais. O pluralismo religioso e a liberdade de crença são garantias constitucionais — e parte do próprio ambiente que permite o florescimento de comunidades de fé diversas no país.
Um espelho contemporâneo: o impacto do evangelicalismo na política brasileira
Um olhar audiovisual recente lança uma luz poderosa sobre essa intersecção entre fé e poder político no Brasil. O documentário Apocalipse nos Trópicos, dirigido por Petra Costa e lançado em 2024, investiga a escalada da influência do evangelicalismo — especialmente de líderes neopentecostais — no cenário político nacional. Costa, com acesso privilegiado a figuras como o pastor Silas Malafaia, o ex-presidente Jair Bolsonaro e o presidente Lula, traça o caminho dessa mobilização religiosa até o centro das decisões democráticas brasileiras.
A narrativa do filme constrói uma análise contundente: o número de evangélicos saltou de cerca de 5% para mais de 30% em quatro décadas, impulsionando formas de cristianismo político com forte influência legislativa e discursiva. O documentário não evita as tensões desse processo: mostra cenas simbólicas — desde heroicas visões de Brasília moderna até protestos violentos e discursos apocalípticos —, convidando à reflexão sobre os limites entre democracia e teocracia.
Para quem estuda o Catolicismo, especialmente em sua relação com outras tradições cristãs e sua posição no Brasil plural, o documentário funciona como um espelho contemporâneo. Ele sublinha que a disputa religiosa no país já não se dá apenas no âmbito doutrinal ou litúrgico, mas sobretudo no campo político e simbólico. Ilustra como, em contextos de fragmentação institucional, religiões que oferecem acolhimento imediato, narrativas fortes e visibilidade midiática acabam ganhando protagonismo — um fenômeno que o Catolicismo, com sua tradição histórica, é desafiado a enfrentar com estratégias renovadas de presença, proximidade e diálogo.
9) Entre legado e futuro: o que observar
Um campo religioso em transformação. O Censo de 2022 mostra que o Brasil deixou de ser quase exclusivamente católico e avança para um cenário de pluralismo religioso. Embora o catolicismo ainda seja majoritário, sua participação cai de forma contínua; os evangélicos seguem em expansão acelerada; cresce o número de pessoas sem religião; e tradições afro-brasileiras reafirmam sua presença. Essa recomposição não é apenas estatística: ela modifica festas populares, a ocupação dos meios de comunicação e até a disputa eleitoral em nível local e nacional.
Diversidade dentro da diversidade. O rótulo “evangélico” esconde uma ampla gama de igrejas e tradições: desde correntes históricas, como luteranos e presbiterianos, até pentecostais clássicos, grupos neo-carismáticos e redes independentes. Cada uma possui lideranças, estilos de culto, estratégias de crescimento e teologias próprias. Reconhecer essa heterogeneidade é fundamental para escapar de estereótipos e compreender a complexidade do fenômeno.
Religião como rede de apoio. Para muitos fiéis, a escolha de uma igreja não se limita a convicções doutrinárias: envolve experiências concretas de acolhimento. Ações como distribuição de cestas básicas, reinserção social de dependentes químicos ou grupos de ajuda mútua criam vínculos fortes de pertencimento. Pesquisas como as do Pew Research apontam que a percepção de “ajuda prática” é um dos fatores decisivos na troca de denominação religiosa.
Desafios de regulação e transparência. Num país laico, liberdade religiosa deve ser preservada. Mas, quando instituições religiosas assumem papéis de grande impacto social e político, é legítimo discutir mecanismos de transparência — em finanças, na proteção de fiéis vulneráveis e na prevenção de abusos. Não se trata de confundir fé sincera com oportunismo religioso, mas de adotar padrões de governança semelhantes aos de qualquer organização que atua no espaço público.
Alfabetização religiosa para a cidadania. Entender conceitos como as cinco solas da Reforma, os motivos históricos de sua difusão ou a lógica global do pentecostalismo ajuda o leitor a diferenciar doutrina, prática cultural e ação política. Esse tipo de conhecimento não é apenas acadêmico: fortalece a participação crítica e informada nos debates democráticos, evitando tanto o preconceito quanto a ingenuidade diante da força da religião na vida pública.
Referências principais (seleção)
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IBGE — Censo 2022. “Católicos seguem em queda; evangélicos e sem religião crescem” (06 jun. 2025). Agência de Notícias IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38929-catolicos-seguem-em-queda-evangelicos-e-sem-religiao-crescem
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Reuters e The Guardian. Cobertura sobre o retrato religioso do Censo 2022.
Reuters: https://www.reuters.com/world/americas/brazil-catholics-decline-evangelicals-grow-2025-06-06
The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2025/jun/06/brazil-census-catholics-evangelicals -
Pew Research Center (2014). Religion in Latin America: Widespread Change in a Historically Catholic Region. Relatório completo.
Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2014/11/13/religion-in-latin-america -
Encyclopedia Britannica — verbetes: Ninety-five Theses, Indulgence, Counter-Reformation, Reformation, Protestantism, Printing press.
Disponível em: https://www.britannica.com -
Parliament UK e Encyclopedia Britannica. Act of Supremacy (1534); informações sobre calvinismo e Genebra.
Parliament UK: https://www.parliament.uk/about/living-heritage/evolutionofparliament/religion
Britannica: https://www.britannica.com/event/Act-of-Supremacy-England-1534 -
Vatican. Catechism of the Catholic Church (partes sobre justificação, graça, sacramentos, magistério).
Disponível em: https://www.vatican.va/archive/ENG0015/_INDEX.HTM -
Encyclopedia Britannica. Verbete Azusa Street Revival (origem do pentecostalismo global).
Disponível em: https://www.britannica.com/event/Azusa-Street-Revival
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